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LAG Blog

  • Writer's pictureFederico Ferretti

Mulheres nas geografias críticas latino-americanas

Updated: Jan 25

Esta postagem é parte de nossa série sobre Publicações Recentes. Caso quiser apresentar, discutir e promover algum trabalho recente, contate os editores do blog em lagukblog@gmail.com.


Aproveito esse blog, e da grande gentileza dxs seus editorxs, para discutir meu último artigo, “Parrésia e liderança feminina: mulheres radicais na geografia brasileira contra ditadura e o conservadorismo acadêmico”, Gender Place and Culture, a Journal of Feminist Geography, 2021 , lidando com dois assuntos que se apresentaram em diferentes fases de sua escrita e publicação. O primeiro é sobre posicionalidade e autorreflexão, o segundo sobre ética nos processos de avaliação da pesquisa.


Mulheres numa manifestação durante a ditadura. wikicommons.

A “armadilha barbada”, e a necessidade da autorreflexão

Entendido como só uma etapa duma longa viagem, esse artigo corresponde a uma tarefa que eu considero ética e política antes que meramente acadêmica. Eu comecei a reconhecer essa tarefa durante meus trabalhos doutorais e pós-doutorais sobre os geógrafos anarquistas Reclus, Kropotkin e outrxs, quando percebi que havia algo errado em sempre ter retratos de gente barbada em meus PowerPoint a cada colóquio. Excavando um pouco mais nos arquivos, não foi difícil ver como a historiografia, inclusive radical, escondeu muitas vozes diferentes, especialmente femininas. Porém, essas vozes foram numerosas e muito importantes para a interseção entre geografia e anarquismo, empurrando-me a escrever artigos e capítulos sobre assuntos como Léodile Champseix, Louise Michel e as mulheres da Comuna de Paris; Charlotte Wilson, Nannie Dryhurst e a revista Freedom; Octavie Coudreau e as “senhoras viajantes”; Maria Luisa Berneri e a imaginação geográfica; Luce Fabbri e as interpretações sul-americanas dos geógrafos anarquistas, e os trabalhos de uma outra admiradora (embora muito diferente) de Reclus e Kropotkin como Anne Buttimer.


Começando uma nova linha de pesquisa sobre geografias radicais e críticas no Brasil e na América Latina, confrontei-me com a necessidade de evitar a mesma “armadilha barbada”. Muitos trabalhos foram recentemente dedicados a figuras como Milton Santos, Josué de Castro e Manuel Correia de Andrade (para só citar alguns), mas a mesma construção dos arquivos desses geógrafos ocorre uma santificação de alguns “grandes homens” na geografia crítica, enquanto outrxs não obtiveram a mesma visibilidade por razões de classe, raça ou gênero. Porém, muitas contribuições recentes mostram os papéis remarcáveis que muitas mulheres estão jogando na pesquisa geográfica latino-americana, promovendo visões críticas, radicais e decoloniais em conexão com abordagens feministas de várias e plurais maneiras.


De meu lugar preferido para fazer trabalho empírico, que é o arquivo, e pautando meu quadro teórico num conceito do qual eu gosto muito, eis a ideia de “parrésia” como rebeldia e franqueza, comecei a investigar papéis femininos nas primeiras geografias críticas brasileiras, a partir dos anos da ditadura. Visto que muitas protagonistas desses anos ainda estão ativas, pude fazer algumas entrevistas, primeiro limitadas a algumas professoras da USP (Universidade de São Paulo). Esse trabalho destaca a importância das lideranças femininas na geografia brasileira, e os vários desafios que a presença de “grandes homens” implicou para suas protagonistas. Isso inclui o risco de serem “ofuscadas” colaborando com figuras muito famosas como Santos, mas também reivindicações explicitas de primazia no estabelecimento das geografias críticas na USP por mulheres que respeitavam essas figuras mas não tinham medo de desafiá-los. Foi o caso de algumas professoras do “Grupo Lefebvre”, um grupo de leitura que foi estabelecido em 1976 e composto pela maioria de mulheres que se tornaram pesquisadoras eminentes sobre assuntos como geografia crítica urbana, e cujas memórias escritas ou orais foram entre minhas fontes.


Esse trabalho estimulou novas reflexões sobre a complexidade das posicionalidades, inclusive minha posicionalidade como pesquisador. Durante uma entrevista, uma de meus testemunhos, que poderia ter mais ou menos a idade de minha mãe, perguntou-me, sendo um homem, eu faço trabalhos domésticos no meu casal, e pareceu bastante reconfortada quando eu falei que em minha casa regras claras estão acordadas sobre tarefas como cozinhar e limpar. Porém, apesar de estar na posição que é classicamente considerada como a mais “privilegiada”, eis um homem branco acadêmico, eu nunca percebi que eu fosse tão central em relação à academia, considerando minha origem familiar operária e minha história de outsider acadêmico que fez outros trabalhos (e foi também ativista) muito antes de virar geógrafo. Depois, minhas experiências de migrante acadêmico em países diferentes me ensinaram que se pode ser o objeto de comentários chatos (eu diria racistas ou xenófobos) por seu próprio sotaque ou atitudes, mesmo sendo homem, branco, acadêmico e com um metro e oitenta de altura. Eis, a ideia de posicionalidades complexas também resulta de algumas experiencias discutidas em meu artigo.


Ética e pluralismo na avaliação da pesquisa

Minha experiência na publicação desse artigo levanta também assuntos de pluralismo e ética na avaliação de artigos. Meu texto foi revisado por quatros pareceristas anonimxs e, durante não uma, mas três rodadas de revisão, aconteceu algo que eu nunca vi em minha (longa) história de publicações. Em todas essas vezes, o mesmo parecerista anônimo dedicou-se muito tempo à escrita de três pareceres muitos longos, todos com o alvo de refutar meu artigo numa maneira insistente e destrutora que eu nunca tinha visto antes, apesar de todos os outros pareceristas aprovarem minhas revisões (mesmo alguns o parabenizando). E de um tom altivo que eu consideraria arrogante mesmo se fosse aplicado ao trabalho de um alunx da graduação.


Lidar construtivamente com alguém que acha que todo o que você faz é errado pode ser um exercício interessante, e sob alguns aspectos, isso foi mesmo útil. Porém, eu tive que levantar questões éticas com as editoras da revista (que ainda agradeço a ajuda e gentileza delas) quando ficou claro que, mesmo depois outras dez rodadas de revisões, esse parecerista continuaria encontrando novas razões para recusar a publicação de meu texto. Entre muito outro, esses assuntos éticos incluíam considerações chatas sobre uma de minhas entrevistadas, explicita identificação do autor através do pronome “dele” apesar de ser a avaliação anônima de ambos lados, e o uso de informações erradas para atacar meus argumentos sobre supostos dados factuais enquanto, depois de uma investigação online, esses dados errados apareceram ter sido pegados pelo parecerista de uma página de Wikipédia cheia de erros. O que me chateou foi o contraste entre essa maneira de transformar qualquer coisa em arma contra um “inimigo”, e a ideia de peer-review como forma de ajuda mútua e pluralismo discutida num excelente artigo de Fennia.[1] Cabe destacar que ignorar esse problema ético poderia ser ainda mais prejudicial para pesquisadorxs em fases de carreira menos avançadas e em posições mais precárias que mim. Sendo um acadêmico estabelecido e tendo já muitas publicações nesse tipo de revistas, eu pude conceder-me o “luxo” de decidir combater essa batalha por uma questão de princípio, não importa o que custasse em termos de tempo e energia para revisar e responder sem medo a cada ponto em cada revisão. Ao contrário, alguém numa posição acadêmica mais “vulnerável” poderia sentir-se intimidadx e renunciaria a levantar assuntos com editores e parecerista, ou de abordar isso publicamente como eu estou fazendo, talvez temendo represálias acadêmicas. Eis, esses assuntos merecem discussão, especialmente no LAG-UK que é composto majoritariamente de pesquisadorxs bastante jovens.


Ao final, mesmo se eu suspeito que a verdadeira razão de esse comportamento foi alguma pretensão de “propriedade privada” de um âmbito acadêmico, o ponto final desse parecerista anônimo era que minha metodologia, meu quadro teórico e político, meus materiais empíricos e minhas conclusões tinham que ser obrigatoriamente o que essx parecerista pretendia, senão meu trabalho só teria sido bom para o lixo, sem apelação. É exatamente daqui que eu queria destacar a necessidade de pluralismo metodológico, epistemológico e político nas geografias críticas, radicais e feministas, ainda mais considerando que lidamos com um âmbito inacreditavelmente variado e plural como América Latina/Abya-Yala, e trabalhamos traduzindo palavras e conceitos entre mundos diferentes, que consoante xs Zapatistas e xs pesquisadorxs do pluriverso devem coexistir. Não empobreçamos todo isso, com dogmatismos acadêmicos, ou pequenas invejas.


Finalmente, eu não falei muito de meu artigo aqui, mas achei melhor estimular um pouco de curiosidade do que simplesmente resumi-lo.

[1] Springer, S., Houssay-Holzschuch, M, Villegas, C., Gahman, L. (2017). Say ‘Yes!’ to peer review: Open Access publishing and the need for mutual aid in academia. Fennia 195 (2), 185–188.

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