O primeiro turno se passou e, para surpresa de muitos, Jair Messias Bolsonaro, após todas desvarias de seu governo nos últimos quatro anos, obteve mais de 50 milhões de votos da sociedade brasileira. Um número um tanto quanto acintoso se levarmos em conta as inúmeras estatísticas publicadas anteriormente pelas pesquisas de intenção de voto, as quais apontavam Luiz Inácio Lula da Silva com possibilidade de vitória no primeiro turno. Em tempo, a corrida pelos votos da “virada” foi intensa por parte dos militantes e adeptos do Partido dos Trabalhadores (PT), afinal de contas pouco mais de 1% poderia garantir o sucesso de Lula já no primeiro turno das eleições. No entanto, como sabemos, este não foi o resultado. Seja para alegria ou tristeza de muitos, fato é que Bolsonaro contava com quase 44% de votos em oposição aos quase 49% de Lula. A quem disse que tivemos uma eleição histórica, seja pela participação ou pela baixa quantidade de votos nulos e brancos.
Antes da verificação das urnas eletrônicas, os ares de nossos trópicos estavam densos e tensos. Havia um silencio, um grito preso por ambas frentes partidárias, que atravessavam o pico dos últimos minutos válidos na eleição. Durante a conferência dos votos realizada pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), após as 17h do horário de Brasília, qualquer caminhante errante pelas ruas brasileiras poderia sentir a tensão que pairava sob o “formoso, céu risonho e límpido” da antiga Vera Cruz tropical. Se nesse momento houvessem unhas a serem roídas, nada mais restaria até que o resultado final fosse liberado diante das TV’s que confinavam alguns em seus lares e liberavam outros aos bares e espaços organizados para uma conferência coletiva. Inclusive essa prática de fazer desses momentos de tensão e incerteza um espaço coletivo, muitas vezes mal compreendida, revela muito sobre a sociedade brasileira. Por um lado, uma dificuldade de lidar com seus resultados individualmente, sejam eles tristes ou felizes; por outro, um instinto comunitário, quase religioso e devoto... uma quase-procura pela testemunha e manutenção de nossas crenças.
Ouvi um adepto do governo de Bolsonaro dizer que o país ficou em silêncio porque não havia o que comemorar, afinal de contas o desempenho de Lula demonstra, de um modo bastante veemente (mas ainda incerto), uma vitória histórica no segundo turno. Nesta terça-feira, dia 18, o candidato e ex-presidente do PT bateu recorde de audiência no canal FlowPodcast, do Youtube. No entanto, caberia a nós questionar: seria isso mesmo, uma vitória histórica? Isto porque, diante de um senado tão capturado pelo Partido Liberal (PL), de uma tão famigerada razão bolsonarista, é difícil assumir que no horizonte já presente do dia 30 de outubro um “futuro espelha essa grandeza”. E que grandeza (?), seria importante perguntar.
Nos diferentes perfis de influencers (local onde Bolsonaro possui um público enorme), encontramos enunciações de diversas formas. Por trás das inúmeras Fake News propagadas, existe a narrativa de uma guerra declarada, uma ciranda crônica e ideológica de uma morte quase anunciada. Por um lado, os chamados “esquerdistas”, “petistas”, “comunistas”, entre tantos outros adjetivos, marcam a linha daqueles que defendem o abordo, a ideologia de gênero, a liberação das drogas, etc. Por outro, os chamados “fascistas”, “bolsonaristas”, “nacionalistas”, da mesma maneira, múltiplos adjetivos, demarcam a fronteira dos que defendem a pátria, a família tradicional brasileira, o cristianismo, etc. Dito desta forma, os números do primeiro turno parecem demonstrar, com certa efetividade e margem de erro, uma suposta polarização que se impõe na sociedade brasileira. De um lado, 49%; de outro, 44%. Nos entremeios, os quase 2% e 3% de votos brancos e nulos, respectivamente, achocalham-se nas voltas dessa ciranda ideológica.
Estaríamos, de fato, matemática e geograficamente, diante de uma polarização ideológica? Seria uma guerra do bem contra o mal ou vice e versa, como foi dito nos diversos debates e propagandas eleitorais que ocorreram e que ainda ocorrem no Brasil? Isto porque encontramos Lula com maiores índices nas regiões do Nordeste (67%) e Norte (47,1%) brasileiras e Bolsonaro nas regiões do Sul (54,6%), Sudeste (47,6%) e Centro Oeste (53,8%). Porém, cabe questionar: o que se põe para além dos números destes precoces resultados? O que se mostra nas fronteiras dessa geografia e estatística eleitorais brasileiras?
Na imagem que inicia este texto, pelas frestas de uma janela alugada, vemos uma senhora branca, de aproximadamente 60 anos, moradora da região norte fluminense do Rio de Janeiro, realizar a troca de uma toalha cuja imagem representa sua adesão ao atual presidente, Jair Bolsonaro. Ao lado, vemos a bandeira da República Federativa do Brasil, símbolo capturado desde as últimas eleições como representação nacionalista do partido de direita a qual o Bolsonaro é representante. Em composição a isso, o jargão eleitoreiro do então candidato ao PL, altamente difundido e replicado, estende esse senso nacionalista ao religioso, “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. Assim, não seria um erro, nós, deste lado de cá da janela, supor que se trata de uma senhora cristã, que defende os “bons costumes” e se autodeclara “cidadã de bem”. Se é “de bem” ou o avesso, não nos cabe o julgamento. Porém, cabe-nos perguntar: que forças fazem com que esta senhora, por diversas horas do dia, se locomova em direção à sua varanda, estique, limpe, troque, arrume a toalha? O que se põe à vista dos passantes para além do rosto de Bolsonaro? Seria isso apenas a representação de uma sintomática polarização dos afetos nas eleições brasileiras?
Parece-me que, ao contrário de uma resposta positiva para estas perguntas, estamos muito mais diante de uma racionalidade bolsonarista que de uma polarização. Se os índices e geografia das eleições brasileiras demonstram certa condição da subjetividade brasileira, esta deveria nos conduzir a uma análise que rompe com a chave de que o bolsonarismo surge como uma “resposta ao petismo” ou à “corrupção generalizada” do Partido dos Trabalhadores, mas de uma expressão de valores que estão impregnados em nossa subjetividade. A cartografia desenhada pela senhora e imaginada por nós pode nos servir como uma imagem-pensamento ao que cultivamos na constituição de um “nós brasileiro”, de uma aleturgia e hegemonia próprias à forma de governamentalidade que se apresenta, como diria Michel Foucault.
Em outras palavras, para além de uma análise um tanto quanto matemática dos resultados de nossa eleição (na direção de um senso comum), é necessário compreender esses dados como expressão de uma racionalidade que se compõe na atualização de regimes totalitários e coloniais mais que de uma mera resposta local a ações de um determinado partido. Isso justificaria, por exemplo, o que fez com que, no primeiro turno, determinados estados do Brasil elegessem mais parlamentares do PL e, ainda assim, votassem acentuadamente no candidato à presidência do PT. Quer dizer, há um jogo subjetivo que faz coexistir, em um movimento quase sobreposto, a estatística 44% e 49%, de modo que estes dados não demarcam uma polarização, mas uma contingência da subjetividade brasileira. Ou seja, os crescentes índices de Bolsonaro nas eleições parece representar muito mais a atualização de uma história mal contada (porém muito praticada) que de um evento que congrega um suposto antipetismo. Isto porque a subjetividade brasileira faz coexistir um nível de violência dentro de uma estrutura dita democrática de direito. Por exemplo, é muito comum encontrar diversos eleitores do Bolsonaro dizer que não concordam com tudo que o mesmo profere, no entanto, afirmam serem completamente controversos à ideia de um “presidiário” (como designam Lula) assumir a presidência, sustentando, inclusive, a compreensão de que lugar de presidiário é na cadeia ou, em outros termos, “bandido bom é bandido morto”.
Desse modo, ainda que os resultados sejam positivos para o PT no segundo turno das eleições presidenciais brasileiras, resta-nos questionar sobre o que será feito face aos imanentes e eminentes 44% que marcam uma contingência aos 49%, e mesmo aos 2% e 3% de votos brancos e nulos.
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