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Writer's pictureFábio Alkmin

Guardiões da floresta ou guardas do carbono?

Autonomia territorial e heteronomia conservacionista na Amazônia indígena.



“Jesus!”, disse o Squire, “você condenaria duas pessoas à prisão por causa de um galhinho?”


“Sim”, disse o Advogado, “e também com grande clemência; pois se a considerássemos uma arvorezinha, ambas teriam sido enforcadas”.


As Aventuras de Joseph Andrews, de Henry Fielding (extraído do livro Senhores e Caçadores, de E. P. Thompson).


A grave crise sanitária causada pela pandemia de Covid-19 não impediu o avanço da destruição da Amazônia, pelo contrário, ampliou as agressões contra os povos e suas florestas. O desmatamento do bioma no Brasil cresceu 67% entre 2019 e 2021, tornando-se o maior dos últimos 10 anos (Imazon, 2022). Esse processo contou com amplo apoio do governo de Jair Bolsonaro, que deliberadamente impulsionou a disseminação do vírus pelo território nacional como estratégia de aprofundamento de sua agenda neoliberal e agroextrativista (Vasconcelos & Alkmin, 2021). Vale comentar que desde o golpe parlamentar de 2016 nenhuma nova terra indígena foi demarcada no Brasil, e sob o comando do delegado da Polícia Federal Marcelo Augusto Xavier da Silva, escolhido por Bolsonaro, a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) passou a trabalhar contra os Povos Indígenas, em prol dos interesses dos setores madeireiros, da mineração, do agronegócio e da indústria de infraestrutura.


Diante de tal situação, a resistência indígena tem se dado de diferentes formas. Uma delas tem sido a construção de formas autônomas e territorializadas de organização política (Alkmin, 2020), buscando superar in situ as crescentes agressões territoriais e a postura anti-indígena do Estado brasileiro. Vale ressaltar que esse fenômeno vem ocorrendo não só no Brasil, mas em vários países da América Latina, particularizando-se conforme os conflitos locais e as nuances da relação entre o Estado e as organizações indígenas[1]. Em minha pesquisa de doutorado em Geografia Humana, orientado pela Profa. Larissa Bombardi (Universidade de São Paulo-USP), busco compreender esse processo na Amazônia na brasileira.


Entre as autonomias indígenas amazônicas se encontram, por exemplo, ações como as “retomadas” de territórios, a autodemarcação territorial, a organização de grupos de vigilância e autodefesa, a construção de Protocolos de Consulta (no contexto do convênio 169 da OIT), a criação de projetos políticos-pedagógicos autônomos, a organização de clínicas indígenas de saúde, e o desenvolvimento de cooperativas e projetos produtivos autogestionados pelas comunidades indígenas. O denominador comum de todas essas diferentes experiências é a negação da ideia de tutela ou dependência estatal, a partir de formas de vida e projetos políticos próprios, territorializados e autofinanciados. Como salienta Raúl Zibéchi, essas experiências extrapolam a mera resistência: em um planeta em colapso, os Povos Indígenas e suas autonomias nos indicam outras formas possíveis de se viver e se relacionar com o espaço, isto é, “projetos políticos de transformação do mundo” (2022, p.12).


Ainda que essas estratégias autonomistas fortaleçam as organizações frente as investidas anti-indígenas do Estado brasileiro, têm atraído paralelamente a atenção de grandes players internacionais – como por exemplo o Banco Mundial, a ONU e a USAID. Em meio à grave crise climática global, diversas organizações políticas e econômicas estariam supostamente interessadas em “financiar” a conservação da floresta pelos povos indígenas, e por extensão suas autonomias políticas, a partir dos chamados “pagamentos por serviços ambientais” (Hacon, 2018).


No entanto, dentro da lógica neoliberal do “capitalismo verde”, tais pagamentos também dizem respeito a um gradativo processo de financeirização do clima e da natureza. Este é o caso do carbono, que de elemento químico invisível e abundante torna-se uma commodity negociada e especulada nos mais variados tipos de mercado. A criação de créditos de carbono (offsets), dentro do mecanismo financeiro conhecido como REDD+ (Reducing Emissions from Deforestation and forest Degradation), permite que os países do Norte Global possam seguir poluindo, transferindo a responsabilidade da emergência climática aos povos da floresta, no Sul Global (Moreno, 2018).


Em meio a tantas crises, poderíamos estar vivendo um momento tão excepcional da história em que os interesses dos povos indígenas, das grandes industrias poluidoras e dos investidores do mercado financeiro poderiam se convergir em torno da conservação e do carbono? Os pagamentos por serviços ambientais poderiam assim financiar as autonomias indígenas, no sentido de garantir seus modos de vida, agenciamentos políticos e proteção territorial? Soa muito estranho, mas esse é o discurso verde que envelopa a ideia do REDD+, o que me levou a ampliar minha investigação realizando parte de meu doutorado no Reino Unido, país que se projeta globalmente como vanguarda das chamadas “green finances”. A pesquisa se deu no primeiro semestre de 2022, na Queen Mary University of London, sob a orientação do Prof. Sam Halvorsen e o apoio do Grupo de Trabalho Latin American Geographies in the UK (LAG-UK).

Green Finance Event, London Stock Exchange Group. Source: focus.world-exchanges.org

A pesquisa demonstrou que os mercados de carbono são um campo em extrema disputa, atraindo a participação de diversos países e setores da sociedade, muitas vezes com interesses difusos e contraditórios. Ao longo de pouco mais de uma década de implementação de projetos REDD+, é cada vez mais possível demonstrar as contradições e a ineficiência desse mecanismo financeiro no combate ao desmatamento e à emergência climática. O pesquisador britânico Chris Lang, que administra o site REDD-Monitor, vem desde 2008 acumulando informações sobre projetos de REDD/REDD+ ao redor do mundo, possuindo mais de 2 mil postagens com evidências críticas a respeito. Em brevíssima síntese, os projetos REDD+ vêm sendo implementados sem a concordância das comunidades indígena, tendem a causar conflitos intercomunitários, potecializam expulsões e desapropriações, restringem o livre acesso à floresta, além de não entregarem os benefícios financeiros prometidos às comunidades envolvidas. Em uma entrevista gentilmente a mim concedida, Chris Lang afirma que a financeirização da natureza é um conceito “aterrorizante”, já que temos a possibilidade concreta de apropriação massiva de terras do Sul por grande corporações do Norte (Lang, 2022).


Na Amazônia brasileira, temos dois casos emblemáticos. Em 2012 o povo Paiter-Suruí foi o primeiro Povo Indígena do Brasil a aplicar o REDD+ em seu território, vendendo créditos de carbono em troca da proteção da floresta na Terra Indígena (TI) Sete de Setembro, na Amazônia. Conforme os envolvidos, os recursos obtidos seriam empregados para o financiamento de um plano de vida autônomo Suruí, com duração de 50 anos (Hacon, 2018). Apesar da grande expectativa, o programa foi suspendido pelos Paiter-Suruí em 2018, devido a conflitos intracomunitários e denúncias de que os indígenas estavam sendo impedidos de acessar os recursos da floresta e reproduzir seu modo de vida.


Uma outra situação ocorrida no Pará demonstra as contradições – e mesmo confusão – presentes nas políticas de Redd+. Também em 2012, uma empresa irlandesa chamada “Celestial Green” fechou um contrato de US$ 120 milhões com o povo Munduruku, comprando por 30 anos os direitos sobre créditos de carbono de seu território. A negociação foi realizada diretamente com um pequeno grupo de lideranças, sem a realização de consultas prévias e informadas, como determina o Protocolo de Consulta Munduruku e a Convenção 169 da OIT, e também sem intermediação da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) ou outro órgão federal brasileiro. Após compreenderem que não poderiam plantar, caçar, pescar, nem mesmo retirar lenha da área contratada durante todo o período, os Munduruku rescindiram o contrato, que foi posteriormente invalidado pelo governo federal.

Protest movement carrying a sign against REDD
Xapuri, Brazil. Source: World Rainforest Movement (https://bit.ly/3xhhGho)

Dessa forma, a “estratégia de conservação” a partir da transformação do carbono em uma commodity requer ignorar o colonialismo implícito na financeirização do clima, uma sofisticada forma de acumulação por despossessão, nos termos de David Harvey. A partir de um complexo “regime neoliberal de governança climática” (Hacon, 2018), o mecanismo REDD+ conjuga de maneira engenhosa a neoliberalização da natureza (Castree, 2010) e o multiculturalismo neoliberal (Hale, 2005), mantendo intacta a lógica do uso dos combustíveis fósseis e as relações de poder entre o Norte e o Sul Global, tudo isso com grandes lucros aos fundos de investimento verdes.


É necessário compreendermos desde já que essa suposta convergência de interesses na verdade oculta uma nova forma de colonialismo climático, onde bens comuns como o carbono e a água passam a ser privatizados e apropriados a partir da lógica neoliberal, tornando-se ativos financeiros que amplificam as desigualdades regionais, o racismo ambiental e os efeitos da crise climática.


O caminho que se apresenta aos povos indígenas amazônicos é desafiador: o submetimento se dá tanto pela destruição extrativista quanto pela suposta conservação neoliberal. Assim, seguir ampliando sua autonomia e controle político sobre os territórios será fundamental para que possam resistir aos velhos e novos colonialismos: externo, interno, climático e molecular (Bombardi, 2021). Como dizem os indígenas zapatistas do México, “a luta é como um círculo, pode-se iniciar em qualquer ponto, mas não termina nunca”.


[1] Para um panorama contemporâneo desse fenômeno, conferir o “Boletín Autonomías Hoy: Pueblos Indígenas en América Latina”, organizado pelo Grupo de Trabalho “Pueblos indígenas, autonomías y derechos colectivos”, do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (CLACSO). Disponível em: https://bit.ly/3xbCINa.



Referências


Alkmin, Fábio M. (2020). A autonomia indígena em defesa da Amazônia. Le Monde Diplomatique Brasil, São Paulo, [parte 1 e 2], mai.2020. Disponível em: https://bit.ly/3ApGjrs. Acesso em 20.mai.2022.


Araújo, Fabrício (2022). Menina Yanomami de 12 anos é assassinada depois de ser estuprada por garimpeiros. Amazônia Real. Disponível em: https://bit.ly/38a6Z6C. Acesso em 20.mai.2022.


Bombardi, Larissa M. (2021). Geography of Asymmetry: The Vicious Cycle of Pesticides and Colonialism in the Commercial Relationship between Mercosur and the European Union. São Paulo; Brussels, Belgium: University of São Paulo/ Commissioned by the EU Parliament. Disponível em: https://bit.ly/3MHj1Dv. Acesso em 20.mai.2022.


Castree, Noel (2010). Neoliberalism and the Biophysical Environment: A Synthesis and Evaluation of the Research, Environment and Society: Advances in Research 1, v.1, p. 5-45.


Lang, Chris (2022). REDD does nothing to address the crisis of endless economic growth.” Interview with Chris Lang, REDD-Monitor, by Fábio Alkmin, PhD student at the University of São Paulo, Brazil. Redd-Monitor, 20.Mai.2022. Disponível em: https://bit.ly/3wzF1e4, Acesso em 20.mai.2022.


Hacon, Vanessa (2018). Governando o clima, florestas e povos indígenas: poderes transnacionais e território. 447 f. Tese (Doutorado em Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade). Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Rio de Janeiro.


Hale, Charles R. (2005). Neoliberal multiculturalism: the remaking of cultural rights and racial dominance in Central America. PoLAR: Political and Legal Anthropology Review, v. 28, n.1, p.10-28.


Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia – Imazon (2022). Desmatamento da Amazônia cresce 29% em 2021 e é o maior dos últimos 10 anos. Disponível em: https://bit.ly/3G9qbOw. Acesso em 20.mai.2022.


Moreno, Camila C. (2018). A Métrica do Carbono e as Novas Equações Coloniais. 183 f. Tese (Doutorado em Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade) - Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Rio de Janeiro.


Vasconcelos, Daniel & Alkmin, Fábio M. (2021) Genocídio e ofensiva anti-indígena durante a pandemia de covid-19 no Brasil. In: GEOGRAFIA E COVID-19: reflexões e análises sobre a pandemia. São Paulo: FFLCH/USP. Disponível em: https://bit.ly/3ukPV6O. Acesso em 20.mai.2022.


Zibechi, Raúl. Prólogo. In: Guerreiro, Luciana G. & Mercado, Fátima M (Coord). Luchas territoriales por las autonomías indígenas en Abya Yala. Grupo de Trabajo CLACSO Pueblos indígenas y procesos autonómicos. Colección Abya Yala. Buenos Aires: Editorial El Colectivo, 2022. Disponível em: https://bit.ly/3Met95P.


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