Em sua recente introdução à série LAG Blog sobre extrativismo e transição energética verde, Tobias Franz e Angus McNelly chamam a atenção para a possibilidade de um novo superciclo de commodities na América Latina relacionado a tecnologias supostamente verdes. Eles alertam contra o otimismo impróprio em relação aos potenciais de desenvolvimento de tal boom para os países onde esses recursos estão localizados, dados os “resultados mistos” do último superciclo de commodities. Como bem apontam, ao passo em que esse ciclo elevou as taxas de crescimento da região entre 2002 e 2013, também intensificou os conflitos socioambientais e a destruição ecológica nas fronteiras extrativistas.
Esta tensão, entre sucessos de desenvolvimento em nível agregado e instâncias localizadas de conflito baseado em recursos, estruturou grande parte do debate crítico sobre o legado de regimes neoextrativistas em países como Equador e Bolívia. Tais debates tendem a gerar um retrato dicotômico do Estado como orquestrador racional do desenvolvimento, por um lado, e agente colonizador da repressão, por outro. Ao fazê-lo, eles “subestimam o enorme grau de incerteza, blefe e ignorância em que se baseiam empreendimentos gigantescos como o navio do Estado” (Taussig 1997: 144).
Esta postagem no blog traz à tona esse caos subjacente, através de um esboço de alguns dos principais temas do meu livro recentemente publicado, Reality of Dreams: Post-Neoliberal Utopias in the Ecuadorian Amazon. Com base em extensa pesquisa de campo realizada entre 2014 e 2017, o livro explora uma série de megaprojetos de infraestrutura extraordinariamente ambiciosos financiados por uma bonança de petrodólares, por meio dos quais o regime supostamente pós-neoliberal de Rafael Correa buscou romper com a dependência ecologicamente catastrófica do país em reservas de petróleo amazônicas. Ele se concentra em três desses projetos: “Manta-Manaus”, as “Cidades do Milênio” e “Ikiam”. Aqui faço um breve resumo da distância entre a visão de cada projeto e seu resultado no terreno.
O corredor de transporte multimodal Manta-Manaus visava competir com o Canal do Panamá, abrindo um corredor interoceânico da costa do Pacífico do Equador até a cidade industrial de Manaus, na Amazônia brasileira, e até a costa atlântica do Brasil. Mais de US$ 1 bilhão foi investido pela administração Correa nas rodovias, portos e aeroportos incluídos no trecho equatoriano do corredor. Mas a estrada sobre os Andes desembocava em um labirinto de cânions e teve de ser abandonada; o rio Napo, ao longo do qual a seção fluvial da rota correria, foi considerado muito raso para embarcações comercialmente viáveis; e os novos aeroportos eram praticamente inutilizados. O resultado foi uma total ausência de comércio internacional se movendo ao longo do corredor. Enquanto isso, o porto do Napo no qual os contêineres deveriam ser transferidos da estrada para o rio foi reaproveitado pela indústria petrolífera, como o porto mais próximo de um controverso novo bloco de petróleo que Correa havia aberto no Parque Nacional Yasuni.
As Cidades do Milênio eram uma rede planejada de duzentas novas cidades a serem construídas em toda a Amazônia equatoriana, na qual os habitantes indígenas da região seriam reassentados e onde finalmente se beneficiariam dos hidrocarbonetos extraídos de seus territórios. Em um microcosmo da dicotomia crítica, entre a celebração das potencialidades progressistas do Estado desenvolvimentista de um lado e a condenação da violência e desapropriação extrativista de outro, Correa e seus oponentes da esquerda antiextrativista entraram em confronto com o projeto. Correa insistiu que estava trazendo modernidade aos cidadãos empobrecidos e marginalizados, enquanto seus críticos o acusavam de lançar um projeto colonial para a captura de territórios indígenas e o apagamento das culturas indígenas. Estes discursos opostos paradoxalmente colaboraram na projeção de uma visão de um Estado onipotente e totalizante. Mas as duas primeiras Cidades do Milênio acabaram sendo meras miragens da modernidade: escolas sem professores, clínicas sem médicos, estradas sem carros – que estavam sendo rapidamente abandonadas por seus habitantes e consumidas pela selva, e nas quais o Estado estava falhando dramaticamente em perseguir seu projeto supostamente “civilizador”. Após o dramático colapso do boom do petróleo em 2014, essas cidades iniciais continuaram seu declínio, e apenas mais uma das duzentas planejadas foi realmente construída.
Ikiam foi concebida como uma universidade de biotecnologia de última geração à beira de uma extensa reserva da biosfera amazônica, na qual cientistas pesquisariam a flora e a fauna da selva, liberando seu potencial econômico e catalisando uma transição verde de uma economia baseado na extração de petróleo para um baseado em conhecimento e biodiversidade. O planejamento da universidade começou em 2012, com inauguração prevista para 2014. Uma equipe de cientistas internacionais foi formada para a fase de planejamento e insistiu que o prazo era completamente irreal. Mas nas palavras de um dos arquitetos do Ikiam (falando em inglês), a resposta da equipe de Correa, foi “Não há tempo! Construa a maldita da coisa agora!” Ambos estavam certos: era completamente irreal e não havia tempo. Quando o campus principal foi inaugurado em outubro de 2014, o preço do petróleo começou sua queda vertiginosa. Como resultado, o orçamento foi repetidamente reduzido. Laboratórios e campi inteiros permaneceram inacabados, e os cientistas começaram a se apropriar do conhecimento indígena na ausência de instalações para realizar suas próprias pesquisas. Enquanto isso, os déficits orçamentários estavam sendo desesperadamente compensados por uma expansão agressiva e cada vez mais privatizada da fronteira das commodities primárias. Desnecessário será dizer que o sonho de Correa de uma economia do conhecimento não se concretizou.
Reality of Dreams inclui explorações etnográficas detalhadas desses megaprojetos, demonstrando que em cada caso “um sonho utópico foi transformado em uma autoparódia satírica, uma visão progressiva foi invertida em uma jornada circular para lugar nenhum e uma grande ambição foi varrida por forças além de seu controle” (Wilson 2021: 198). Não há espaço para discutir minha teorização sobre esse processo aqui. O objetivo deste post – além de incentivá-lo a ler meu livro! – é simplesmente chamar a atenção para as dimensões fantasmáticas e absurdas do poder estatal que muitas vezes são obstruídas pelos debates esquerdistas sobre os benefícios e perigos do desenvolvimento extrativista, seja no contexto do último superciclo da mercadoria ou no próximo. Esse absurdo não precisa ser motivo de desânimo. Em vez disso, pode ser tomado como uma indicação de que a situação política é mais aberta do que parece. Essa abertura foi ainda demonstrada por uma série de revoltas explosivas lançadas na Amazônia equatoriana contra o Estado e o capital, que também são detalhadas em meu livro, e que encenaram diretamente o ideal utópico de abundância coletiva e liberdade igualitária. Nestes momentos, talvez possamos vislumbrar a prefiguração de futuros radicais que transcendem as fantasias desenvolvimentistas do estado extrativista.
Referências Bibliográficas
Taussig, Michael (1997) The Magic of the State New York: Routledge.
Wilson, Japhy (2021) Reality of Dreams: Post-Neoliberal Utopias in the Ecuadorian Amazon New Haven: Yale University Press.
Traduzido por Pietra Cepero Rua Perez
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